No alto de seus dezenove anos uma pessoa está
no auge da boa forma, goza de infinita vitalidade e tem uma vida toda pela
frente, você pode pensar, mas acredite, essa sua perspectiva mudaria se me
conhecesse.
Nunca me imaginei vivendo aquela vida de
família feliz que se vê nos comerciais de margarina e tampouco imaginava meu
futuro preso á uma doença sem cura. Minha vida sempre foi toda errada, desde
meu nascimento, quer dizer, os médicos disseram á minha mãe que não poderia ter
outro filho além de Isabel. Ou seja, eu vim de surpresa, um acidente.
Hoje cedo pedi á Tulio que raspasse meu
cabelo de uma vez. Já não suportava ficar perdendo fios de cabelo por todo
canto da casa, como um animal perde pelos, sem contar as manchas no couro
cabeludo, onde minha pele estava irritadiça e dificilmente, como dissera o
médico, cabelos tornariam a crescer ali. Eu mesmo peguei uma tesoura, e,
sentado frente ao espelho comecei a cortar os tufos, que caíam solenes no chão.
Sendo-lhes sincero eu nunca imaginara que teria coragem de tal ato, quer dizer,
em tempos passados isso seria algo extremamente dolorido, quase que
insuportável. Ficar careca? Imagina! Aparência era fundamental.
Enquanto as mechas de cabelo negro escorregavam
entre meus dedos lágrimas desciam por minhas faces pálidas. Não que fosse um
ato dolorido, mas significava muito, como uma passagem de ciclo, uma mudança
sem volta para um estado permanente.
-- Tulio, por favor, termine o serviço. – Eu
pedi afastando as lágrimas, tentando esboçar um sorriso no rosto.
-- Oh, você não precisava... – Ele tentou
dizer, após colocar suas coisas na poltrona de nosso quarto. Eu o calei
mostrando a máquina de cortar cabelo.
-- Não será difícil. – O encorajei.
Ele fechou a porta e correu ao meu encontro,
abraçando-me e beijando meu pescoço. Pelo espelho pude perceber seu olhar
duvidoso, interrogativo.
-- Ora Tulio, você não vai querer que eu
fique com esses buracos no couro
cabeludo, vai? – Falei referindo-me ao meu péssimo corte de cabelo. – Vamos, me
dê um corte de cabelo descente.
Sorrindo ele tomou a máquina nas mãos e
começou seu serviço. Em poucos minutos não restava um único fio negro para
contar a história. Tulio fizera um bom trabalho, eu é que não ficava com a
aparência de todo agradável sem cabelos. Ele disse que eu ficara bem, mas sabia
que era somente para me fazer sentir-me melhor. Era só uma questão de tempo
para que eu me acostumasse com o novo visual. Por fim suspirei aliviado,
finalmente não teria mais que me preocupar com os cabelos espalhados pelo chão
da casa.
Meu peito apertava quando levantei da
cadeira, uma sensação de vazio, de despedida. Encarei aquele rosto mais que
perfeito á minha frente e senti como se nunca mais o veria na vida. Puxei Tulio
para perto e o beijei do modo mais intenso que pude, queria aproveitar cada
momento que me restava. Ele retribuiu de modo tão ou mais apaixonado, suas mãos
percorrendo meu peito nu, depois o abdômen, até seu dedo indicador infiltrar-se
em minha cueca.
-- Não. – Pedi. Afastei-me dele, empurrando
suas mãos para longe. Era melhor parar de uma vez, pois se aquelas carícias
continuassem eu acabaria não resistindo.
-- Você sabe que eu não tenho medo, Ícaro. –
Replicou ele. – Porque tem tanto pudor, porque insiste em não se deixar levar?
-- Eu posso te matar. – Falei de modo
objetivo, indo direto ao ponto. Aquelas palavras doíam ao serem proferidas, mas
era a verdade.
Tulio baixou os olhos, impaciente esfregou o
rosto com as mãos e se sentou na beira da cama. A ideia de usar preservativo
não me deixava totalmente seguro. Medo, o que me impedia de seguir em frente
era o medo de infectar a quem eu mais amo, aprisionando-o no mesmo futuro que
eu. Esse vírus maldito, esse liquido sobrenatural prendia-me de modo tão
arrebatador que não havia meios de ignorá-lo.
Eu tinha plena consciência de que Tulio não
compreendia meus motivos, mas partindo da hipótese de que eu partisse logo eu
quero que ele fique bem, continue levando sua vida em frente, continue amando,
e retome sua vida social que abdicou por minha causa, unicamente para cuidar de
mim. Meu medo não era de partir e deixar mais um infectado e sim de infectar
ele, fazendo com que perca o resto da juventude assim como eu.
Agora foi minha vez de me aproximar. Passei
a mão entre seus cabelos pretos e espessos. Fisicamente éramos muito parecidos,
agora não mais como no passado, pois eu emagrecera muito, ficara por deveras
mais pálido, e, bom, careca também. – Obrigado por não insistir. – Falei a ele.
Desde então tomei consciência de algo
terrivelmente avassalador. Em breve ele seria novamente feliz. Sem mim.
Diferentemente do que você pode pensar, eu não me sentia mal em ter tal
conhecimento, na verdade até animava-me. Um de nós dois ainda teria a chance de
ser feliz.
-- Hora do remédio. – Ouvi seu sussurro
próximo ao meu ouvido.
Sentado na cama esperei a chegada de meu
coquetel, aqueles comprimidos que me mantinham vivos.
Engoli as balinhas multicoloridas e fechei
os olhos, certamente dormiria até o dia seguinte.
No meio da noite acordei assustado,
sentindo o sangue correr rápido por minhas veias, o coração palpitando, mas não
era palpitação do tipo que eu sentia quando estava com Tulio, era pesada e
atormentadora, dessas que fazem seu coração pesar tanto quando uma bola de
boliche. Tremores percorriam meu corpo, suor escorrendo pelo rosto. Deveria ser
alguma reação aos remédios, os costumeiros efeitos colaterais, mas agora eles
pareciam diferentes, extremamente mais fortes do que de costume.
A luz do quarto ascendeu-se e vi a figura de
Tulio preocupado a me encarar, não queria incomodá-lo no meio da noite, mas era
desnecessário pedir que não se preocupasse. Eu sabia que enquanto eu existisse
ele estaria lá, ao meu lado, me amando do mesmo jeito e escrevendo os mesmos
romances ruins que eu fazia questão de ler orgulhoso.
-- Shii... – Com seu toque suave me puxou
para perto, fazendo-me deitar em seu colo. Deixei meu corpo se levar, mal
conseguia sustentar-me sentado. Ficamos por um bom tempo assim, unidos como um
só. Tulio sofria tanto com minha dor que parecia senti-la em sua própria pele.
– Aguente firme, ouviu? Vamos ao hospital e...
-- Não... Eu já vivi coisas demais Tulio,
mais do que eu posso suportar.
-- Pare com isso, é apenas mais uma crise,
você vai ver. Amanhã tudo estará bem novamente, como já aconteceram várias
vezes. – Tulio falava com tanta convicção que foi impossível não me comover.
Sua voz era carregada de verdade, de certezas, porém suas palavras não passavam
de mera ilusão.
-- Te amo tanto garoto. – Queria pedir que
ele largasse minha mão, me deixasse ali, mas ele não o faria, suas palavras
seguintes só vieram a confirmar.
-- Eu também. – Ele fez, sorrindo nervoso,
olhos encharcados. Inclinou-se para mim e acariciou minha orelha com seu nariz.
Apesar de toda a dor que percorria meu corpo, os tremores e calafrios, eu pude
sentir uma lágrima sua cair em meu rosto. – Juntos até o final.
-- Juntos até aqui. – Lembrei-lhe.
-- Não, esse não é o final, ah, vamos
acredite em mim! Temos tanto pela frente ainda.
Esse ‘’ Temos tanto pela frente ainda’’
confesso que me assustava. Eu já vira mais do que posso, estava esgotado. Fora
desse meu mundinho eu sei que há muita vida, mas sinceramente eu já não sei se
tenho forças para sair porta afora e busca-la.
Senti algo subir até minha boca e mandei que
Tulio se afastasse, mas ele não o fez. Tive de reunir toda minha força para
levantar de seu colo antes que vomitasse meu sangue infectado ali mesmo. Tudo á
minha volta começou a girar, mas mesmo assim eu pude ver que nos lençóis havia
manchas vermelhas, eu acabara arranhando as feridas que irritavam minha pele...
Tentei questioná-lo se havia entrado em
contato com o sague, mas não consegui proferir palavra. O que pude distinguir
das imagens turbulenciadas foi Tulio falando ao telefone e então... Não, não
ouve então, só o nada.
~~~~~~~~~~~~~~
Não acredito que ainda estou aqui. Pensei
com meus botões quando acordei no leito do hospital, minha segunda casa. É
morte, parece que não foi dessa vez. A gente sempre com essa mania estúpida de
adiar nosso encontro tão inevitável.
Enquanto estive desacordado tive sonhos,
visões ou delírios com minha família. De hora em hora via o rosto de um dos
quatro á me encarar, sorriam, querendo me ver bem com uma doçura no olhar e
arrependimento no semblante. Ah, eu e meus devaneios...
O Doutor Germano me examinava, sob o olhar
atento de Tulio.
-- Gostei do novo corte de cabelo. – Disse o
doutor sorrindo. Desde que tudo isso começou era com ele que eu me tratava,
aliás, fora ele mesmo quem me dera a notícia.
Antes de tudo isso começar eu pensei que ser
gay era a maior provação que eu teria de passar em toda a minha vida. Muito me
enganei. Constatei isso no consultório médico, ouvindo a sentença que o Doutor
lia do amontoado de exames. Lembro-me bem daquele dia, e, mesmo que quisesse
esquecer não conseguiria. Você pode achar estranho, mas ao ouvir as palavras do
médico eu ri. Preferi rir á bancar o garoto revoltado. Rir das próprias
desgraças, afinal o que mais eu poderia fazer?
O senhor vestido de branco olhou para mim curioso,
deixando um pouco de lado o ar fúnebre que tomara.
“Eu entendi.” Disse á ele antes que decidisse
me mandar para a ala psiquiátrica. Ao admitir isso me dei conta da real
situação. E chorei. Chorei e ri. Um misto de sentimentos numa pessoa confusa.
“É sério doutor, eu entendi.”
‘’ O HIV infecta as células do sistema
imunológico ‘’ Ele ia me explicando “e as utiliza para fazer novas cópias do
vírus. Estas cópias, então, continuam infectando outras células vizinhas. Com o
tempo, isso vai diminuindo a habilidade do corpo em combater infecções...” E
continuou a falar por longos minutos, porém, eu mal ouvia o que saía de sua
boca, eram termos médicos, nomes complicados de remédios que eu deveria começar
a fazer uso, enfim, montes de palavras sem nexo. Foi então que um comentário
seu puxou-me para a realidade. “Você deveria conversar com sua parceira, ou com
quem quer que tenha se relacionado nos últimos tempos.”
Encarei os exames encima da mesa. “Claro.”
Claro. Claro que não. Eu não sabia de quem
havia contraído o vírus, poderia ser de qualquer pessoa que frequentasse as
baladas LGBT da cidade. Relacionei-me com todo tipo de gente; homens,
travestis, mulheres, transexuais. Não me envergonho de lhes revelar isso, pois
foi exatamente como aconteceu. E, por favor, não me pesas explicações de como
eu pude terminar em tal estado, ou o por que. Apenas olhe para a sociedade,
reflita e tire suas próprias conclusões. Não pense que estou querendo tirar a
culpa de meus ombros, mas imagine você andando pela rua, as pessoas lhe
observando, cochichando, fazendo comentários, abafando risos, indo para o outro
lado da calçada ao te encontrarem. Sempre fui reprimido por amarras firmemente
colocadas, amarras sociais, dogmas pressupostos.
Isso foi (e está sendo) o mais fácil de
encarar. Mas agora vamos um pouco além: imagine-se sendo expulso de casa pelo
simples fato de sua família não lhe aceitar do jeito que é. Bom, pior ainda é
saber que não fui eu quem lhes contou sobre minha real condição sexual.
Tulio vinha insistindo para que nos
assumíssemos diante á minha família, mas para mim isso era por deveras complicado.
Medo. Covardia. Intitule como quiser. Eu já havia ensaiado gritos de liberdade
frente ao espelho, mas chegada a hora grito não saía. Fato é que quase um ano
atrás eu cheguei em casa e deparei-me com uma família escandalizada,
fotografias espalhadas pela mesa de jantar. Imagens minhas. De Tulio. Nós.
Escutei tudo que disseram mudo, não
contestaria. Meus avós encaravam-me como se eu tivesse cometido um crime,
cuspiam palavras na minha cara, palavras que machucavam tanto quanto armas.
Mamãe apenas chorava e recusava-se terminantemente á olhar nos meus olhos. Fui
para o quarto arrumar as malas e quinze minutos mais tarde eu estava na
calçada, meu avô ainda gritando como um doido, os vizinhos acompanhando o
circo, com seus comentários inoportunos.
Andei sem olhar para trás, sem olhar para
aquela vida que não me pertencia mais.
Fiquei escondido por alguns dias num desses
hotéis de quinta. Escondido literalmente, até de mim mesmo, enojava-me encarar
minha imagem no espelho. Eu queria negar aquilo que era, mas as imagens falavam
por si, queria poder gritar que a culpa não era minha por ter nascido assim,
mas seria em vão, eles não entenderiam. Continuariam a me culpar pelo resto da
vida pela minha escolha, maldita palavra. Escolha? Vamos, me diga; você acha
que se eu tivesse outra opção escolheria justamente ser assim? Ãh?
Condição. Essa é uma condição á que você é
aprisionado.
Depois de alguns dias fui á igreja.
Diziam-me que Jesus Cristo poderia me salvar se eu o aceitasse em minha vida,
mas apesar de eu rezar todas as noites em voz alta e de joelhos ao lado da cama
nada acontecia, ninguém descia da cruz e saltitava ao meu encontro para me ajudar.
Nada. Era pecado, o pastor dizia, mas eu não conseguia entender. Não dizem que
Deus criou tudo que existe na terra e ama a tudo e a todos do mesmo modo? Então
porque o meu amor diferente é considerado pecado? Talvez eu devesse ter
começado a frequentar á igreja mais cedo, assim, quem sabe, eu entenderia
melhor toda essa situação e poderia fazer parte dos padrões impostos.
Desisti de tudo, até mesmo de Tulio.
Naquele momento até a ele eu culpava, pois se não tivesse cruzado meu caminho
nada disso teria acontecido.
Joguei-me na noite, era o que me bastava
fazer. Acordar á cada manhã com uma nova companhia, um estranho. Jogava na
bebida e no sexo toda a minha frustração, frustração por não ser quem minha
família queria que eu fosse. Momentos de prazer, que passados deixavam um vácuo
maior ainda. Cheguei ao ponto de lançar uma garrafa de uísque no espelho para
evitar ver minha imagem, odiava-me cada vez mais, detestava ser esse ser
considerado anormal, pecaminoso, imoral. Pegava uma lâmina e a posicionava para
rasgar meus pulsos, mas tudo que consegui foram alguns poucos arranhões que mal
fizeram tirar míseras gotas de sangue. Faltava-me coragem para rasgar os pulsos
de uma vez. Mais uma vez esse maldito sentimento regia minha vida, o medo.
Depois de alguns meses a febre fazia parte
da minha rotina, passava dias deitado na cama do hotelzinho vagabundo. Manchas
avermelhadas e irritadiças apareciam por todo o corpo, mas eu não dava
importância, logo passaria, eu pensava, não é nada demais. Apesar dos sintomas
perdurarem por semanas eu jurava de pés juntos que não era nada até que
desmaiei e acordei na enfermaria de um hospital público.
Ouvido o veredicto do médico eu voltei a me
encarar no espelho, afinal poderia ser a última vez que eu o faria. Era só
esperar, muito cômodo, não é?
Numa manhã ensolarada senti algo
chacoalhar-me pelos ombros, não sabia que a morte chegaria de modo tão
inusitado. Até que ela fora rápida, essa vadia.
“Vamos Ícaro, reaja!”
Tulio, sempre ele, minha fortaleza
indestrutível.
“Eu estou...”
“Já sei de tudo, levante, vamos para minha
casa.”
Fiquei agradecido por ele ter me poupado de
lhe relatar minha atual condição. Até hoje não sei como ele me encontrara, toda
vez que o pergunto se recusa a responder ou da um jeito de escapar pela
tangente. Mas de que importa? Cansado de viver eu retornava para o seu lado,
donde nunca deveria ter saído.
Eu
queria agradecer ao médico pelo elogio ao novo corte de cabelo, mas não tive
forças, as palavras simplesmente não saíam de minha garganta, era como se algo
as prendesse ali. Fechei os olhos e virei a cabeça para o lado, somente
escutando a conversa dos dois.
-- Ele vai continuar assim por muito tempo
ainda? – Perguntou a voz preocupada de Tulio.
-- Essa infecção foi ainda mais grave que a
última, -- Disse o doutor após uma breve hesitação. – Foi causada por fatores
que ainda desconhecemos, na verdade é quase um milagre ele ainda estar vivo. De
agora em diante tudo depende dele mesmo, da sua reação ao tratamento, e,
principalmente, da sua vontade de viver.
-- Eu queria que ele fosse mais forte
doutor, que reagisse, saísse de dentro daquele apartamento para encontrar a
vida. – Essas palavras saíram vacilantes. Palavras de um ser que também estava
cansado, cansado de lutar por sua vida e pela minha. Tulio recomeçou a falar,
mas algo o impediu de terminar a frase, um nó na garganta. – Quanto tempo ele...
bom, você me entende. – Ele só queria saber se eu morreria logo.
-- Como eu lhe disse, tudo depende de N
fatores. Ele pode ir hoje mesmo, amanhã, depois, ou viver ainda mais que nós.
Nos basta esperar.
Esperar. Eu sabia que essa palavra fazia-o
sofrer profundamente, então, me decidi. Acabaria com isso de uma vez por todas.
Foi com absurdo esforço que eu consegui virar a cabeça e soltar algumas poucas
palavras arrastadas, quase que sussurros.
-- Dê os parabéns á Tulio, foi obra dele. –
Disse eu, como se o comentário sobre o meu cabelo acabara de ser feito, ao
simpático doutor Germano, que pareceu surpreso.
Ele sorriu e estendeu a mão para Tulio,
igualmente surpreso, que retribuiu. – Parabéns meu rapaz, você sempre salvando
esse a vida desse menino. – E com uma mão hábil aplicou uma injeção em meu
braço, em seguida, com o estetoscópio envolto no pescoço saiu para o corredor.
– Comportem-se! – Falou colocando a cabeça para dentro do quarto.
-- E como é que você está?
Olhei para o meu braço, ele tinha tantos
furos que poderia facilmente ser confundido com uma esponja. – Acho que bem. Bom, melhor do que eu pensei
que estaria.
Eu podia ver no olhar de Tulio, lia em seu
semblante o que sentia. No momento, apesar de feliz por me ver acordar,
pareceu-me decepcionado. Comigo. Como dissera ao médico ele queria que eu fosse
mais forte, que lutasse pela minha vida de modo mais decidido. Lutasse pela
nossa vida. E tinha razão de decepcionar-se. Eu me tornara um ser fraco que não
poderia desfrutar de todo amor que ele oferecia.
-- Você precisa lutar. – Me pediu de modo
suplicante, como se de mim dependesse sua própria vida. Ele estava debruçado
sobre a cama, eu podia sentir sua respiração próxima a mim. – Somos um só,
liberdade sem limite, esqueceu?
Eu sempre dissera aquelas palavras. Um só.
Livres. Continuar a decepcioná-lo contradiria tudo isso, afinal tínhamos uma
história juntos, um laço que não poderia ser desfeito. Decidi que faria o
máximo possível para dar á essa história um ponto final digno, mesmo que para
isso fosse preciso reunir toda a força restante em meu corpo para a batalha
final. Queria deixar Tulio orgulhoso da mesma maneira que eu ficava quando lia
seus romances escritos á mão, ter a oportunidade de lhe dar colo e de mimá-lo.
-- Não. Decididamente esse não é o final. –
Consegui dizer antes do remédio aplicado em meu braço fazer efeito.
Até para mim mesmo era difícil
acostumar-me com essa nova vida. Como é que aquele garoto mimado, vindo de uma
família classe média poderia se encontrar em tais condições? Eu sei, era isso
que todos se perguntavam, inclusive eu. Tantos sonhos perdidos, empacotados
para nunca mais. Sonhava em abrir as asas e voar, conquistar o mundo com meus
escritos. Sim, sonhava em ser escritor, mas Tulio sempre foi melhor nisso que
eu, escrever era outra de suas paixões, além da fotografia. Ele me incentiva
muito á literatura, mas restrinjo-me á ler seus contos de caligrafia fina e não
me atrevo a inventar histórias e conto essa para que mesmo quando eu não mais
estiver Tulio saiba o quanto eu o amei, somente por ele. Precisei seguir o
caminho mais perigoso para descobrir que não é possível viver só.
O nariz de Tulio acariciando minha orelha
fez-me despertar não sei quanto tempo depois da nossa última conversa, talvez
dias. Ele cantarolava minha música preferida, era como adormecer e ter um sonho
bom. Mas era vida real e eu sabia que ele estava ali. Perguntei-me se além de
abdicar de sua vida social também havia largado o trabalho como fotógrafo no
jornal da cidade para me fazer companhia no hospital. Tulio era apenas dois
anos mais velho que eu, mas infinitamente mais maduro, conseguia enxergar tudo
com calma, estava sempre de bom humor e era um garoto absurdamente amável, em
todos os sentidos. Sim, ele realmente soube me cativar, e, se quiseres que
alguém não se esqueça de você, simplesmente cative-a, isso o tornará diferente
dos outros perante os olhos dessa pessoa, o tornará especial.
-- Sabe Tulio, eu tive sonhos bons. – Falei
sem ao nem abrir os olhos.
-- Espero que eu esteja neles. – Falou com
um risinho.
-- Também. Tive sonhos, não sei, talvez
delírios, com mamãe... Sabe, foi tão bom. Era como se minha família estivesse
aqui, finalmente me aceitando... As coisas poderiam ser tão diferentes e eu me
odeio por isso, eu poderia ser diferente.
-- Não jogue todo esse fardo somente em suas
costas, não se culpe, somente se aceite, hum? – Tulio entendia perfeitamente o
medo que eu sentia em revelar á minha família que era gay, mas diferente de mim
sua família o aceitou, continuou a apoia-lo, davam mais suporte que antes, por
isso eu não fazia questão que ele entendesse essa culpa que eu sentia por
tê-los perdido. – E não foram sonhos, nem delírios. – Continuou Tulio. – Sua
família realmente esteve aqui.
Meus olhos se arregalaram diante á essa
revelação, senti até meu coração bater mais forte, será que enfim as coisas
seriam como sempre sonhei? Eu nutria, mesmo que de modo inconsciente,
esperanças de que um dia isso aconteceria novamente, ter um último momento em
família, naquele aconchego, aquela tão sonhada sensação de proteção que só eles
podem lhe dar. Eles também sentem a
minha falta, imagino...
-- Não. – Disse Tulio quando eu o encarei
com os olhos marejados, esperançosos. – Eles vieram ver como você estava,
pagaram todos os seus gastos no hospital e..., bom Ícaro eles se preocupam com
você. Lembra aquele dia em que te encontrei no hotelzinho de bairro? Então, foi
sua mãe quem me disse onde você estava, ela te procurou por todo canto da
cidade. Seu avô nos deu aquele apartamento e... -- Não era esse tipo de ajuda
que eu queria. Tudo o que eu desejava era o amor deles, a aceitação, seria
pedir demais? – Ele disse que te auxiliaria no que fosse possível, mas não quer
mais...
Fiz que sim com a cabeça. Ele não quer me
ter por perto. Minha simples presença o incomoda e sei que ele não revelou á
ninguém no hospital que era meu avô e sim um homem de posses que resolvera
fazer uma caridade. Nesses momentos eu até acho bom não ter conhecido meu pai,
quer dizer, é uma pessoa a menos pra me rejeitar.
Tulio tentava secar minhas lágrimas enquanto
eu chorava soluçante. Minha família estivera ali, tão próxima e, no entanto tão
distante. Eu já sofri muito com toda essa história, me iludindo com a falsa
esperança de tê-los de volta, tentaria esquecer, se é que isso é possível. Mas
não importa o quanto eles me machuquem, eu sempre estarei aqui, esperando de braços
abertos.
Dois dias depois ganhei alta. Não sei ao
certo se foram dois ou nove dias depois, ainda me sinto meio grogue e
esqueço-me de certos detalhes. A família de Tulio fez questão de preparar uma
festa para quando eu saísse do hospital, mas o médico, esse estraga prazeres
disse-me que ficasse, no mínimo, mais uma semana em total repouso. Tulio ia
empurrando minha cadeira de rodas – não pense que além de tudo também fiquei
aleijado, o Dr. Germano fez questão da cadeira de rodas para me poupar esforços,
por mais que eu me sentisse bem. - pela rampa de saída quando eu passei a mão
na minha cabeça e senti que novos fios de cabelo estavam crescendo em todo o
couro cabeludo, sem aquelas falhas de antes. Olhei para cima e ri para Tulio, orgulhoso
dos meus novos fios.
Entramos no carro e deixamos o hospital para
trás. Apesar de saber que logo retornaria ali para meus costumeiros exames
senti como se aquele ambiente já fizesse parte do passado.
A semana de total descanso, diferente do
que eu pensava, passou bem rápida. Tulio pegara férias no trabalho e passava
todo o tempo comigo, os pais dele vinham quase todos os dias jantar conosco.
Isabel, minha irmã, começou a nos visitar com maior frequência. Eu resistia aos
impulsos de perguntar á ela sobre nossa família, talvez por orgulho ou medo de
criar falsas expectativas, não sei. Nas horas vagas eu atormentava Tulio,
mexendo nas suas câmeras fotográficas que cuidava com tanto amor, como se
fossem verdadeiras relíquias. Às vezes eu até tinha ciúmes daquelas coisas.
-- Cuidado com a lente! – Ele me advertia
quando eu começava a fuçar nas câmeras com a curiosidade de uma criança, e como
tal, logo perdia o interesse. Começava então á ler seus escritos, fazendo mil e
uma perguntas sobre os personagens, o que aconteceria com eles e tudo mais.
-- No final as coisas devem sempre terminar
bem. – Estávamos deitados na cama numa noite de clima agradável, somente a luz
do abajur iluminando o quarto, a porta da sacada estava aberta e éramos
banhados pela luz de uma lua cheia.
Tulio falava sobre como terminaria um conto que começara á escrever.
-- Nem sempre as coisas são assim.
-- Eu sei, mas devemos sempre esperar o
melhor, por mais terríveis que as coisas estejam. A vida é sempre o maior
espetáculo.
Por isso eu amo ele, tão doce e sonhador que
me cativa á cada vez que abre a boca, mesmo que seja para soltar um arroto.
Sem medo me lanço ao seu encontro num beijo
quente, amassando as folhas de papel que estão entre nós. De início Tulio
parece meio confuso, até tenta se esquivar, certamente estranhando minha
repentina mudança.
-- Ei mocinho, um só, liberdade sem limite,
esqueceu? – Fasso de modo teatral. Ele ri e depois de soltar algo do tipo “se
você não existisse eu te inventaria” retribui o beijo.
Corpos deslizando, selando, juntando. Coisa
que algumas semanas atrás eu não imaginava que teria coragem de fazer
novamente. Entregar-se sem medo, conhecer a essência do outro no sentido mais
puro da palavra, sem vergonha, desconfiança, sem pudor algum, esquecer-se de
todos os dogmas sociais. Não era um simples momento de transa, era mais do que
isso, um encontro de almas, algo absurdamente intenso. Eu sei, com essas minhas
palavras posso parecer aos seus olhos um garoto por deveras piegas, porém nem sempre
fui assim (e além do mais estou aprendendo á ignorar o que as pessoas pensam de
mim). Foi Tulio quem despertou esse lado que até então eu desconhecia, o amor
tem dessas surpresas, ele pode despertar sentimentos que nunca imaginávamos que
sentiríamos, em suma; o amor nos transforma.
Devo lhes informar que também ganhei peso,
e graças ao meu Sentinela Sempre Atento tomava todos meus remédio sem um minuto
de atraso, que curiosamente não causaram mais efeitos colaterais. Meu cabelo
voltou ao seu tom negro, não tão espesso quanto antes, mas ao menos eu podia
dizer que tinha cabelo, consequentemente eu e Tulio voltamos a ser confundidos
como irmãos. Não desmentíamos, de fato éramos irmãos. De alma.
Voltei á fazer testes nos teatros da cidade,
queria voltar para os palcos, de onde eu saíra há mais de um ano. Agora, porém,
eu reagia de modo mais maduro ao receber um não, era capaz de rir de tudo.
Agradecia aos diretores pela oportunidade e agendava outro teste para a próxima
temporada de espetáculos, mais dia menos dia eu conseguiria, era uma questão de
tempo, e, principalmente de paciência. Retornava para casa exausto, mas o olhar
orgulhoso de Tulio dava-me forças para o dia seguinte.
E a festa! Bom eu já estava devidamente
recuperado quando Noêmia, a mãe de Tulio nos ligou convidando-nos para a tão
aguardada festa ao meu retorno para casa. É claro, de início me fiz de difícil,
dizendo que não havia motivos para tanto, mas quando me foi revelado que eu
passara quarenta e sete dias nas dependências do hospital decidi que a festa
seria um evento mais do que justo.
No domingo o despertador tocou ás seis da
manhã, eu e Tulio nos arrumamos e fomos fazer nossa caminhada matinal. Algum
tempo antes eu reclamaria como um tio caquético e chato para acordar tão cedo,
mas como já lhes disse, sofri muitas mudanças, para melhor ao que me parece.
Compramos uma água mineral para hidratar e
sentamos no gramado sombreado pelas árvores da praça central.
-- É incrível te ver assim Ícaro.
-- Por você. – Disse eu entre um gole de água
e outro. – Somente por sua insistência.
Ele sorriu e eu percebi que estava
emocionado.
-- Obrigado por não desistir de mim.
Seus lábios estreitaram-se num sorriso ainda
maior, os olhos brilhando como o mar refletindo a luz do sol. Deitamos no
gramado e ficamos por um bom tempo ali, conversando silenciosamente, se é que
me entendem. Ás vezes podemos nos expressar melhor com um olhar, ou com um
simples toque do que com mil palavras. Pessoas que matraqueiam com demasiada
frequência na verdade são vazias e apesar de despejarem litros de palavras
encima de você, não conseguem dizer nada.
Às dez horas voltamos ao nosso apartamento
para tomar um banho revigorante. Estava sem fome, mas mesmo assim comi um pote
de gelatina, só para repor as energias. Dei uma rápida organizada no quarto e
seguimos para a casa dos pais de Tulio para a tão aguardada festa. No meio do
caminho fiquei pensando em determinados assuntos; A família de Tulio era mais
simples e apesar disso aceitavam sua condição sexual naturalmente, a minha era
abonada, mas insistia em defender aquela visão pequena. Decididamente a
condição social, cor ou credo, de nada influencia. Eu não culpava meu avô, ele
fora criado de outra maneira, numa cultura diferente, com regras e costumes que
dificilmente eram quebrados. Ele viveu assim ao longo de toda a sua vida por
isso não poderia pedir que mudasse sua visão assim, de uma hora para outra.
Quem sabe um dia ele caia na real.
Se quiser saber, também não descobri quem
enviou aquelas fotos á minha família, no momento isso já não importa, na
verdade a criatura até me fez um favor, seja ela quem for.
Quando estacionamos frente à casa de
alvenaria verde limão tudo estava anormalmente calmo para um local que
receberia uma festa.
-- Será que eles cancelaram e se esqueceram
de nos avisar? – Perguntei á Tulio.
Ele encolheu os ombros e abriu o portão da
frente, fazendo um gesto para que eu entrasse primeiro. Fui andando pela
calçada admirando o quintal cuidado com tanto esmero. Toquei a campainha, mas
ninguém se pronunciou á porta. Tulio girou a maçaneta e empurrou-a. Nada.
Entramos e pude ouvir uns risinhos abafados vindos de trás das cortinas.
-- Não acredito! – Eu gritei aos risos quando
todos saltaram de trás dos móveis berrando “surpresa!”. Até então eu pensara
que seria algo mais íntimo, mas todos estavam ali, primos, tios, irmãos, gente
que eu nem conhecia. Demorei algum tempo para encarar todos os rostos que
estavam ali, comemorando.
Do amontoado de gente um rosto se
sobressaiu.
-- Mãe...? – Eu fiz mal acreditando no que
via.
Ela abriu os braços e eu corri ao seu
encontro e a abracei tão forte que devo tê-la deixado sem ar. Senti como se
minha vida pudesse ser resumida àquele abraço. Ver mamãe de braços abertos em
sinal de aceitação era algo único. Foi o momento em que mais perto da
felicidade plena cheguei. Isabel também veio e juntou-se ao abraço. Não esperei
que vovô também saísse de trás de uma cortina ou de um móvel qualquer, quanto á
ele as coisas seriam mais difíceis.
Mamãe levantou a cabeça e fez algo que eu
não esperava, chamou Tulio para juntar-se a nós. E ele o fez, com um sorriso no
rosto e lágrimas nos olhos, assim como todos que estavam ali.
Senti-me um ser humano pleno em sua
essência, sem mais medos do preconceito da sociedade, sem medo de nada, porque
sim, com o apoio da família você se sente invencível. Apoio esse que eu
imaginei nunca sentir, mas que agora se concretizava naquele abraço.
Quando nos afastamos, depois de longos e
deliciosos minutos, toda a família de Tulio aplaudiu. Todos acompanhando esse
pequeno e simples espetáculo da vida, mas de importância descomunal. Depois
desse dia eu teria ainda mais forças para lutar, era como se eu estivesse
mais... Completo.
Tulio saiu correndo da sala e rapidamente
retornou com uma de suas máquinas fotográficas nas mãos.
-- A foto pessoal! – Anunciou ele,
programando a câmera e colocando-a encima de um aparador. – Em quinze segundos!
– Ele correu para o meu lado e rapidamente todos nos juntamos para uma foto em
família.
Então eu chorei, mas foi de felicidade - era
quase inimaginável esse momento - tentei me recompor o mais rápido que pude,
não queria sair na foto com a cara toda retorcida e lágrimas rolando pelo
rosto.
Em quinze segundos essa imagem ficaria
retida pela eternidade, “só a imagem retém o tempo” repetia Tulio cheio de si
quando me mostrava as fotografias que tirava.
Todos nós soltamos um sonoro “xis!” e o
flash disparou. Momento eternizado.
Talvez aquela fosse a última foto em
família, nunca se sabe o dia de amanhã, mas o que importa é o agora, nada mais.
Todos nos abraçamos animados, formando um verdadeiro bolo humano. Um momento
ímpar em nossas vidas.
Desse momento em diante senti que teria
total coragem para encarar a vida e voar, assim como o Ícaro da mitologia, voar
tão alto quanto ele, o mais próximo do infinito possível. Sentir o vento no meu
rosto, o prazer de alçar voo por meu próprio esforço, respirar a vida que
existe além daquele monótono apartamento. Tenho certeza que enquanto cada um
nesta sala viver essa história não morrerá. Sei que Tulio um dia a recontará na
forma de um de seus romances.
Mas é claro, como diz o mito meu futuro já
está marcado, dado momento minhas asas derreterão e eu sucumbirei. Mas tudo
isso terá valido á pena porque eu consegui amar e ser amado, missão cumprida.
No final da história tudo se resume á essa
simples palavra; amor...
Fim
Conto dedicado á todos os Ícaros que
também sonham em voar, sem medo de ser
como são.
Texto escrito nas madrugadas de Junho de 2011
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